Como não poderia deixar de ser, o pano de fundo do Fórum Social Mundial de 2009, realizado em Belém do Pará entre 27/01 e 1º/02, é a crise econômica que se estabeleceu no mundo a partir de 2008 mas que bem antes de 2001 (data em que realizou-se o primeiro Fórum Social Mundial em Porto Alegre) já insinuava-se nos altos índices de degradação social, econômica e ambiental que assolava o planeta sob os olhos e mãos impassíveis de organismos multilaterais, governos e megacorporações multinacionais. Também deve-se lembrar a ascensão da primeira pessoa negra ao cargo de presidente dos EUA, Barack Obama. E ainda, nesse mosaico, a ocupação militar israelense em Gaza e o horror que há muito extrapola a decência e que o mundo inteiro assiste como a um mero espetáculo televisivo. Esse pano de fundo deveria ser o suficiente para que os participantes do Fórum Social Mundial de Belém declarassem estar satisfeitos com a derrocada do modelo econômico preconizado em Davos e enfim parafraseassem os cartazes que se vê costumeiramente nos estádios de futebol, onde lê-se: “eu já sabia”. Mas esse parece definitivamente não ser o espírito do Fórum, como aponta Boaventura de Sousa Santos (1): “Se não dermos a solução, ela virá de Davos, com mais capitalismo e menos direitos. São eles que estão a pensar uma solução. Nos reunimos [no Fórum Social Mundial] desde 2001 e não fomos nós que derrotamos o neoliberalismo, ele cometeu suicídio. Eles estão lá [em Davos] pensando o que vai ser o capitalismo depois da crise. E nós, o que estamos fazendo?”
Por certo um Fórum que trata de temas como o desenvolvimento sustentável, a educação em direitos humanos, a biodiversidade, o direito à saúde, os investimentos sociais, a transversalidade étnica, de gênero e cultural, o acesso a condições dignas de ocupação do espaço urbano e rural, inclusão social e a participação civil democrática, dentre muitos outros, está fazendo mais pela construção de um outro mundo possível do que outro apenas preocupado em salvar os lucros e preservar a especulação do capital, mesmo que para isso utilizem-se recursos destinados por princípio ao desenvolvimento de serviços e programas sociais de primeira necessidade, tais como a erradicação da pobreza e o desenvolvimento de padrões dignos de saúde e educação para a população de países inteiros que direta ou indiretamente financiam e alimentam a circulação do capital em escala global.
De certo modo a indagação de Boaventura é injusta, mesmo que sua intenção seja provocativa. Por conta de interesses diversos não deve-se procurar unificar um discurso e uma prática pois o conteúdo final disso muitas vezes é interpretado como se coubesse ao Estado e aos governos reunir e perpetrar o desejo de movimentos sociais complexos, os quais tem orígem diversa e visam objetivos muitas vezes discordantes. Pretender entregar a diversidade dos movimentos que integram o Fórum a governantes é tão perigoso quanto precário. Perigoso porque não há garantia alguma de que os governantes possam ou queiram manter uma fidelidade de princípios. Já está mais que provado que o interesse dos governantes é governar, mesmo que ao custo de fugir a princípios que deveriam ser o seu norte inabdicável. E precário porque revelariam movimentos sociais tutelados. A idéia de que o Estado seja um fim em si mesmo e de que ele responda em última análise pela sociedade está vinculada a um modelo político que muito pouco tem a ver com o espírito do Fórum Social Mundial e a oportunidade do Fórum é a mais clara demonstração de que os movimentos sociais tem muito mais a contribuir à sociedade se respeitados em sua autonomia e sua história*. É bastante claro para a opinião pública que os governos tem suas próprias oportunidades de criar condições e investimentos em áreas sociais e as executa de acordo com suas próprias opções políticas.
Ao diversificar os espaços de interlocução (entre as atividades paralelas ao Fórum Social Mundial estão ocorrendo o Fórum Mundial de Educação, o Fórum Mundial de Saúde, o Fórum de Autoridades locais, o Fórum Mundial de Mídia Livre, entre outros), fica demonstrada a capacidade de levar as questões de fundo do Fórum a debates mais particulares e a construir a partir daí um mais amplo painel de propostas e experiências, evidenciando a grande diversidade de espaços e atores sociais envolvidos. Se as experiências e os movimentos reunidos no Fórum de Belém darão uma resposta a altura da crise mundial, se eles tem mesmo esse dever, se eles resistirão ao apelo dos governos que os querem sob sua vista, se manterão os princípios originais preconizados por Bernard Cassen, Ignácio Ramonet, Oded Grajew, João Pedro Stédile e tantas outras lideranças que muito se empenharam em constituí-lo, se eles terão condições de ter sua própria sustentabibilidade e se puderem multiplicar-se através do próprio exemplo e fazer valer sua trajetória - ou não, não é uma resposta que se encontrá nas ruas de Belém durante estes dias. O que encontraremos são pessoas e grupos de pessoas com muita disposição de conhecer-se e averiguar as formas mais efetivas com que a proposta fundamental do Fórum possa ser concretizada, mesmo que ainda não se possa antever plenamente isso, como quer dizer Boaventura (2) ao afirmar que outro mundo é possível, mesmo que não saibamos ainda exatamente como ele possa ser. Desprezar essas expectativas é um grande risco. Mantê-las e revigorá-las ao ponto de que apontem pistas e/ou forneçam respostas a indagações simples como essa pode ser considerado um dos maiores méritos do Fórum Social Mundial.