quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

CONCURSO DA ONCE DE BRAILLE

CONCURSO DA ONCE DE BRAILLE DE 2008


"A verdade é que estou tão aborrecido que a única coisa que me ocorre e que possa fazer, é contar o que se passa comigo, a ver se desta forma desabafo um pouco. Ouvi dizer muitas vezes que compartilhar as coisas alivia, vamos lá ver.

Desde que Louis Braille apareceu na minha vida, esta mudou radicalmente. Nunca pensei que alguém que tivesse nascido há tantos anos, (uns duzentos que barbaridade!) e tão longe, noutro país, no outro lado do oceano, pudesse ter um papel tão importante na minha vida. E não, senhor Braille, não me alegra nada de que o seu maravilhoso invento se tenha cruzado no meu caminho.

Por sua culpa, agora levo uma vida sedentária, monótona, triste, quando até ao seu aparecimento, era tudo ao contrário, passava o dia de um lado para o outro, a ir e vir, saudando a muita gente, em fim, uma vida activa como deve ser a nossa. Até os meus músculos têm-se ressentido. Antes as minhas patas eram fortes e robustas, agora não.

Quando fui afastado da minha família vim viver para esta casa com o que desde então é meu amo, um senhor não muito alto, não muito gordo, bastante jovem, simpático e afectuoso. Ao princípio não nos entendíamos muito bem. Se eu queria jogar um pouco com ele e deixava-lhe uma pedra aos seus pés para que me a atirasse, ele, ou não me fazia caso, ou movia inquietamente as suas mãos de uma maneira que eu nunca tinha visto antes alguém fazer.

Quando queria chamar a sua atenção, tinha que me aproximar dele e dar-lhe com meu focinho na perna. Mas pouco a pouco fomos encontrando a nossa forma de nos comunicar e ainda que tivesse alguma queixa sobre a comida, que na verdade não era muito abundante, fui ganhando cariño por ele.

Bem cedinho, a cada manhã, o meu amo e eu íamos à rua. Ele pendurava uma grande mochila às costas, colocava-me uma correia rústica e começávamos a marcha. Também teve os seus altos e baixos de início, até que compreendi que o meu amo o que esperava de mim era que me colocasse sempre à frente dele, e que estivesse atento a todos os obstáculos. Também ajudei-o com prazer nisso, que para mim era inclusive divertido. Cada dia caminhavamos por muitas ruas cheias de obstáculos, e cada dia era diferente. Havia lugares novos e pessoas novas. De vez em quando encontrava algum pedaço de pão, e às vezes manjares mais suculentos que conseguia com um voo, tentando que o meu amo não soubesse porque, nunca soube as suas razões, mas tinha-me proibido. Visitávamos muitas casas, o meu amo trocava uns papelitos com as pessoas e íamos a outras casas e assim num dia e noutro, num bairro e noutro, quilômetros e quilômetros.

Mas um dia, ao tocar mais uma vez a uma porta, atendeu-nos uma mulher que reparei imediatamente que tinha algo peculiar, colocava um pouco as suas mãos à frente como costumava fazer o meu amo. E nesse dia começou tudo. Ele desta vez, para além de mudar esses papelitos como fazia habitualmente, esteve muito tempo a falar com a mulher. Nesse dia ouvi pela primeira vez o nome de Louis Braille.

Para minha surpresa, no dia seguinte voltamos à mesma casa e o meu amo voltou outra vez a falar durante bastante tempo com a mulher. E desta vez não houve intercâmbio de papelitos. A mulher deu ao meu amo uns papéis grandes, verdade que se lhe diga, mais feios, que ele guardou com muito cuidado num lugar especial da mochila. Nessa mesma noite vi o meu amo a tocar nesses papéis e pensei que estava chateado, porque eu não via neles o mínimo interesse. Eram uns papéis marrons com qualquer coisa em cima que parecia puntitos.

E aqui começaram os meus males. Agora íamos todos os dias à mesma casa, onde o meu amo passava boa parte da manhã e as nossas caminhadas começaram a ser bem mais curtas e monótonas. A coisa foi-se agravando porque o meu amo, levava de cada vez montões maiores de papéis de puntitos, e pela tarde começávamos a ficar em casa com mais frequência. Ele apetecia-lhe tocar nesses papéis e eu... pois eu ao seu lado, deitado no solo a dormitar e a lamentar-me da volta que a minha vida estava a dar.

Sim, tinha algo bom, meu amo parecia estar mais alegre a cada dia. Num dado momento, pensei que a mulher ia ser talvez a minha ama, mas aí enganei-me, nunca me passou tal coisa, o meu amo e a mulher continuaram a verem-se todos os dias durante mais algum tempo. Ao ouvir as suas conversas soube do Braille, do tacto, de ler, de estudar, de um monte de projetos que pareciam não ter fim.

E aqui estamos, agora em vez de passearmos pelas ruas, vamos a cada dia ao escritório. O meu amo já não leva essa mochila grandota e até a minha correia é atualmente mais elegante. Hmmm, e também há que dizer, devo ao tal Louis Braille porque agora o meu prato está mais e melhor servido. E se bem pensado, quem sabe se no futuro, quando o reumático ou o que seja, que costuma chegar com os anos, me atingir, talvez tenha que agradecer a esse tal de Louis Braille que o meu amo seja hoje em dia um senhor importante.

Estou a pensar que esses puntitos são mágicos, porque o meu amo põe-se sempre tão contente quando os encontra em embalagens, pacotes, medicamentos, frascos, e se até os meus pacotes de comida já levam puntitos, e o meu amo, sempre toca a tocar, a procurar puntitos em todas as partes. Tanta afeição que ganhou a tocar, que por tocar agora toca a flauta, pega papéis com puntitos, e a tocar toca… que é um primor ouví-lo. Às vezes, preocupo-me se os dedos não gastar-se-lhe-ã o de tanto tocar? Mas não me parece, porque até diria que me faz festinhas com mais delicadeza.

Não sei, continuarei a pensar, será que vou mudar de opinião em relação o invento do Sr. Braille...?”

Autor desconhecido